MidiÁsia

Via Revista Intertelas

Poucas histórias tem o poder de impressionar o leitor como a obra de Yukiko Sugihara (1913–2008), especificamente o livro “Passaporte para a vida”. Basta que se faça uma pergunta: o que você sabe sobre a participação dos japoneses na 2ª Guerra Mundial? Eu não me refiro aos conhecimentos que você possa ter sobre a participação do “Estado japonês”, vinculando-se aos países componentes do Eixo (com a Itália e a Alemanha), ou sobre o ataque a Pearl Harbor, em dezembro de 1941. Refiro-me às ações dos japoneses, da gente simples, como sujeitos das suas próprias histórias num contexto de guerra.

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Capa do livro Passaporte para a vida. Crédito: Mateus Nascimento.

Anteriormente, conhecemos o testemunho mais que impactante dos sobreviventes de Hiroshima. Vimos como o senhor Takashi Morita e seus amigos, a sra. Junko Watanabe e o sr. Kunihiko Bonkohara, corajosamente, lembram-se de um dos momentos mais terríveis da humanidade e seus impactos – lembrando que todos sentiram na pele os efeitos de tudo aquilo – para alertar (com vigor!) a nossa geração sobre o horror das guerras. Os três estrelam a peça “Os Sobreviventes de Hiroshima”, escrita e dirigida pelo Rogério Nagai.

Eles mobilizam as suas experiências para questionar tudo aquilo e lutam para que não se repita. (Em tempos de retomada da militarização e da agressividade na política externa japonesa, é importante e didático lembrar o moto: Pela vida, pela paz, Hiroshima nunca mais!). Contudo, eles são sujeitos que vivenciaram o bombardeio, uma ação externa e através das suas interpretações do fato questionam e cobram ações do governo japonês e dos governos internacionais.

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Chiune Sugihara. Crédito: Sugihara House Museum.

Por sua vez, Yukiko, nossa autora de hoje, vai em outra direção, ainda mais instigante. Ela apresenta a história de seu marido, Chiune Sugihara (1900–1986), vice-cônsul do Japão na Lituânia, que ficou conhecido por salvar 6000 refugiados judeus, ao decidir conceder vistos a eles. Ao não obedecer às ordens dos superiores do gabinete de assuntos estrangeiros de Tóquio, Chiune mostrou o quanto os indivíduos podem, sim, insurgirem-se, quando a ordem estabelecida não faz sentido.

Tal decisão entrou para a história, pois, precisamos considerar o fato dele ser um japonês, apoiando “os alvos do Eixo”, e transgressor da ordem ao mesmo tempo. Precisamos conhecer Sugihara, pois, certamente, será fonte de inspiração em tempos tão sombrios como os nossos. Yukiko reconstrói sua memória na esperança de fazer justiça a Chiune, que perdeu seu posto diplomático logo após o final da guerra. Ele só seria reconhecido nos anos de 1950, quando um grupo de famílias ligadas aos judeus salvos por ele o homenageou e vem mantendo vivo o legado das suas ações, em prol da paz.

Ouvi os ruídos
Do leito do esposo insone
Que estava hesitando
Em uma decisão grave:
Fornecer ou nãos os vistos

Yukiko Sugihara

A história começa por volta de julho de 1940. No dia 27 daquele mês, um grupo grande de pessoas instala-se ao redor do consulado japonês na cidade de Kaunas, região central da Lituânia. Eram todos judeus que estavam em fuga da região polonesa, após a invasão sem precedentes impetrada por Hitler pouco menos de um ano antes (em 1939).

Os fugitivos buscavam uma forma de escapar dos caçadores nazistas e Chiune, na posição de vice-cônsul, consultou os órgãos superiores em Tóquio. O Ministério das Relações Exteriores emitiu uma posição negativa, não autorizando nenhuma categoria de visto para os solicitantes.

Sugihara e família no consulado de Kaunas. Crédito: Nobuki Sugihara.

Sugihara e família no consulado de Kaunas. Crédito: Nobuki Sugihara.

Os pedidos não cessam. Sugihara emite nova consulta e mais uma vez os vistos são negados. Naquele momento, segundo Yukiko, já se tratavam de aproximadamente 6000 pessoas. Os números variam um pouco entre as fontes, mas se trata de algo inacreditável ver uma autoridade japonesa – os diplomatas possuem esse estatuto – continuar tentando.

Yukiko Sugihara posa com o filho e neto Crédito: United States Holocaust Memorial Museum.

Yukiko Sugihara posa com o filho e neto. Crédito: United States Holocaust Memorial Museum.

Sugihara, numa decisão desconcertante, decide emitir os vistos sem autorização superior, considerando a humanidade da sua função mais do que o aspecto técnico da carreira, e contrariando todas as expectativas daqueles homens e mulheres até então sabidos das relações entre o Japão e a Alemanha. Após a guerra, Chiune Sugihara não foi condecorado, pelo contrário: foi exonerado pelos serviços prestados. Evidentemente, sua demissão está atrelada ao feito humanista, que lhe custou muito. A guerra forçou seus deslocamentos. A decisão rendeu-lhe a antipatia do governo japonês e alguns de seus familiares foram afetados como represália pelas suas decisões.

Já na casa dos 50 anos precisou recomeçar sua vida, caminhando de forma discreta. As entradas no Japão passaram a ser impedidas e vigiadas, talvez como forma de contenção da história e da sua personalidade. Quando sua morte chegou, em 1986, não havia nenhuma condecoração do governo ou mesmo um pedido formal de desculpas. O que havia era um rastro de agradecimento espalhado por todos os locais onde houvesse judeus, sabidos dos seus feitos. O governo japonês não lhe reconheceu, mas os órgãos israelenses louvam a sua memória como sustentáculo das novas pontes entre Israel e Japão.


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