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Em 1953, o cineasta japonês Yasujiro Ozu encerrava a Trilogia Noriko com a sutil e fascinante história de Tokyo Monogatari – contando, no elenco, com a aclamada atriz Setsuko Hara, uma espécie de “princesinha do Japão”, cujo legado continua sendo reconhecido até a atualidade. No Brasil, o filme ficou conhecido como Era uma vez em Tóquio, facilmente encontrado para assistir online com legenda em português, inglês ou sem legenda em plataformas de streaming como o Youtube. Com poucos cenários e nem tantos diálogos assim, Tokyo Monogatari nos brinda com um emaranhado de emoções tenras e que, sem dúvida, nos colocam para questionar quão satisfeitos estamos com a vida dinâmica e atarefada dos séculos XX e XXI.

Tokyo Monogatari conta a história de um casal de idosos que viaja para a efervescente Tóquio do pós-guerra para reencontrar os filhos adultos. Percebemos, entretanto, que esses filhos se tornaram ocupados demais com suas próprias vidas e rotinas de trabalho para que reservassem um pouco de tempo para receber seus pais de forma apropriada. Esse suposto descaso é brutalmente contrastado com o carinho afetuoso por parte da nora e do genro, causando certo incômodo desgostoso no espectador.

É curioso que, em tempos atuais de pandemia e incertezas, procuramos apreciar um filme que nos traz um sentimento conflitante e agridoce, mas que, inevitavelmente, leva-nos de um suspiro pesaroso a um sorriso triste até o final da narrativa. Tokyo Monogatari não arrancará lágrimas do espectador, pois não se trata de uma narrativa embrulhada em uma dose considerável de melodrama e do desgastante palpitar causado por reviravoltas típicas de diversas histórias. Esse filme nos convida a refletir sobre nossas relações com nossos pais, mas não nos deixará mais tristes – embora, certamente, nos sentiremos menos felizes. Como Kyoko (Kyoko Kagawa), a filha mais jovem desse casal de idosos, bem sintetiza mais ao final da trama: “não é decepcionante a vida?”. Sim, Kyoko. Eu acho que ela é.

Diálogo entre Kyoko e Noriko. Crédito: Pinterest

Embora possa ser um pouco datada, a premissa só parece fazer sentido por ser justamente ambientada na década de 1950. Esse é também o ponto mais alto do filme. Como espectadores brasileiros acostumados a associar o Japão a um país vibrante e repleto de tecnologia, ver as breves cenas da Tóquio de 1953 nos direciona para um tempo irrecuperável. O próprio preto-e-branco das imagens reforça essa ideia de um passado que hoje poderia até mesmo ser ficcional. A frieza sentida nas relações humanas do filme também parece ser característica de um distanciamento físico e desprendimento emocional que somente um retorno ao passado poderia justificar. Mas seriam, de fato, frias as relações? Talvez seja necessário um pouco mais do que o nosso olhar ocidentalizado para compreender que, mesmo incompreensíveis, as relações sustentadas no filme parecem ser baseadas em um afeto melancólico.

Shukichi (Chisu Ryuu) e Tomi Hirayama (Chieko Higashiyama) moram na cidade de Onomichi com sua filha mais nova, Kyoko Hirayama. Em dado dia, o casal faz uma longa viagem de trem para visitar os seus outros filhos: Koichi Hirayama (So Yamamura) – médico – e Shige Kaneko (Haruko Sugimura) – dona de um salão de beleza –, além de sua nora Noriko (Setsuko Hara), esposa de seu filho Shoji, falecido durante a Segunda Guerra. Existe também um quinto filho, Keizo (Shiro Osaka), que mora na cidade de Osaka.

Ao chegarem em Tóquio, Shukichi e Tomi se sentem um incômodo, visto que acabam dependendo exclusivamente de Noriko, a nora, para conhecer Tóquio e conversar com eles. Seus filhos de sangue, no entanto, não parecem estar muito felizes com sua chegada. Para remediar a situação conturbada, Shige e Koichi usam suas economias para enviar os pais em uma viagem para Atami, uma cidade não muito distante de Tóquio, conhecida por suas fontes termais. Assim, o casal poderia descansar e passear na praia, o que os deixariam mais entretidos e ocupados. Entretanto, a situação em Atami não é tão relaxante quanto se esperava.

Tomi e Shukichi em Atami. Crédito: The Criterion Collection

Cansados da barulheira do hotel, Shukichi e Tomi retornam para a casa da filha Shige, que agora se encontra ocupada com uma pequena reunião “de negócios”. Tendo em vista que não havia mais espaço para eles naquele lar, Tomi decide se hospedar uma noite na casa da nora, e Shukichi sai para beber com um antigo conhecido que havia se mudado para a capital anos atrás. Nessa situação desconfortável, Tomi aproveita para conversar com Noriko e sugerir que a nora encontre um novo marido. Shukichi, por sua vez, passa mais tempo do que o desejável em um bar e volta para o salão/casa de Shige arrastado pela polícia, completamente bêbado, intensificando a sensação de que ele e a esposa estavam deslocados.

Percebendo a falta de espaço em Tóquio, o casal decide voltar para sua cidade natal. Na estação de trem, Tomi entende que aquela era a última vez que encontraria sua família, visto que a viagem era longa e cansativa, e eles não tinham mais idade para ficar indo e vindo. Assim, a despedida dos filhos é repleta de melancolia. No caminho, Tomi não se sente muito bem, e os dois param abruptamente em Osaka. Já em Onomichi, Tomi descobre que seu estado de saúde se encontrava bastante debilitado, o que leva Shukichi a enviar telegramas para os filhos, avisando que a mãe poderia falecer em breve.

Koichi, Shige e Noriko vão imediatamente para Onomichi, chegando a tempo de se despedir da mãe, já em coma. Keizo, no entanto, não consegue chegar a tempo. Amarrando a lógica do filme, Keizo estava incomunicável quando o telegrama foi enviado, pois estava em uma viagem de trabalho e não havia como receber a informação. “Eu não fui um bom filho”, sintetiza os sentimentos de Keizo durante o funeral da mãe. Em seguida, Shige, Keizo e Koichi decidem ir embora, deixando novamente para trás o seu passado e seu pai, agora sozinho. No entanto, a nora Noriko decide ficar mais um tempo e ajudá-lo no que fosse preciso.

Noriko e Shukichi. Crédito: Letterbox

A filha caçula, Kyoko, conta para Noriko que se sente frustrada e indignada com o egoísmo de seus irmãos. Aqui, talvez pela primeira vez na narrativa inteira, Noriko expressa sua opinião verdadeiramente, ao dizer para Kyoko que ela entenderia quando fosse mais velha e que não se tratava de falta de consideração ou egoísmo. É simplesmente normal que os filhos se tornem ocupados e se distanciem de seus próprios pais. “Não é decepcionante a vida?”, questiona Kyoko, antes de partir para o trabalho, trazendo um sentimento definitivamente agridoce para as complexas relações humanas.

Ao fim, antes de Noriko voltar para Tóquio, Shukichi revela que sua esposa andava preocupada com o fato de Noriko não ter se casado de novo e que a considerava uma “filha” muito boa. Também compartilha que a gentileza de Noriko foi, inclusive, superior à de seus próprios filhos, mesmo sem ter o mesmo sangue. Ele a incentiva a não viver a vida de forma solitária e a se casar novamente, deixando o sogro – e seu passado – para trás.

Talvez minhas palavras não sejam capazes de refletir sutileza o suficiente para retratar o pesar ironicamente leve que essa obra de arte, dirigida e co-roteirizada por Ozu, nos apresenta. Como a vida nos obriga a moldar as nossas relações interpessoais? O quanto as dinâmicas da vida são capazes de nos afastar de nossos berços para que persigamos objetivos próprios e nos ceguem para o que fica para trás? Tokyo Monogatari traduz brilhantemente um sentimento agridoce de obrigação e abandono que nem sequer tem um nome.

Crédito: IMDb

Ficha técnica:

País: Japão | Direção: Yasujiro Ozu | Roteiro: Yasujiro Ozu e Kogo Noda | Atores: Setsuko Hara, Chieko Hagashiyama, Chisu Ryuu, Haruko Sugimura, Kyoko Kagawa, Shiro Osaka, So Yamamura | Duração: 136min |  Ano: 1953.

Categorias: Resenhas

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